DIREITO NA DITADURA: O USO DAS LEIS E DO DIREITO DURANTE A DITADURA MILITAR

Antônio Sidney da Silva, José Wilson da Silva, Vanessa do Carmo Ferreira Jenuário, Robson Antão de Medeiros

Resumo


Demetrius Silva Matos. Lançada em 2021 pela editora Paco, a obra é fruto de sua pesquisa do Trabalho de Conclusão do Curso de Direito, na Unidade de Ensino Superior Dom Bosco (UNDB), em São Luís, capital do Maranhão. Tendo como foco central analisar o relacionamento das instituições do Estado brasileiro com o Regime Ditatorial Militar (1964-1985), em especial o Supremo Tribunal Federal (STF), o autor divide o texto em três capítulos.

Na primeira parte do livro, no capítulo intitulado “Participação do STF durante o Regime Militar”, o autor expõe que apesar de atualmente o STF ser a instância judicial máxima do Estado brasileiro, servindo como guardião da Constituição, até meados da década de 1960 a Corte não tinha tamanha importância para a República, encontrando-se “abaixo tanto do Poder Executivo quanto do Poder Legislativo, não existindo um equilíbrio entre os três, como existe atualmente, sendo que estes dois já citados sempre preponderavam sobre o Judiciário quando os interesses de cada um chocavam-se [sic]” (MATOS, p. 31). Apontou que Floriano Peixoto utilizou-se da estratégia de não indicar durante seu mandato (1891-1894) membros à Corte objetivando enfraquecê-la.

Todavia, um ponto que merece atenção é que o presidente Floriano, mesmo sendo um autocrata por essência, ao contrário do afirmado pelo autor, indicou nomes à Corte. O “Marechal de Ferro”, como era chamado, indicou pelo menos 12 (doze) nomes para o STF, tendo o Senado rejeitado cinco destas indicações: i) Cândido Barata Ribeiro, um médico. Ii) Ewerton Quadros, general do exército; iii) Demóstenes Lobo, diretor-geral dos Correios; iv) Galvão de Queiroz, general do exército; e, v) Antônio Seve Navarro, então subprocurador da República. Os dois últimos, ao contrário dos três primeiros, eram formados em Direito, mas não se sabe as causas de suas recusas por parte dos senadores (SENADO NOTÍCIAS, 2015; MEDEIROS, 2022).

Caminhando mais adiante e dando um salto histórico de pelo menos setenta anos, o autor contextualiza que após o Golpe de 1964 “o STF conviveu com relativa tranquilidade com a ditadura militar, tomando todo o cuidado para evitar ações que poderiam ser vistas pelos militares como “antirrevolucionárias”, como, por exemplo, relegar os casos de liberdade civil na pauta do STF entre 1964 e 1974” (MATOS, p. 31), objetivando não ter sua autoridade comprometida ou até mesmo ser extinto. Deste modo, o STF não fez oposição explícita ao governo militar muito menos reagiu publicamente contra o Golpe, pelo menos por parte dos ministros.

Porém, não se deve compreender o Supremo Tribunal Federal, de uma forma geral, como fraco e omisso (senão cúmplice) durante toda a época da ditadura militar. Apesar de o presidente do STF à época, Ribeiro da Costa, apoiar publicamente o Golpe, existem algumas situações nas quais seus ministros foram contra os interesses dos golpistas, “mesmo que não fizessem oposição a estes, uma vez que continuaram a julgar em acordo com a legislação em vigor e dentro de sua competência” (MATOS, p. 32). Assim, mesmo sem força política para se opor ao Regime, a Corte manteve-se viva com as parcas forças de que dispunha, buscando resguardar o mínimo de direito para os cidadãos e manter sua autoridade e competência, enquanto “os militares queriam sobrepor sua vontade ao Judiciário” (MATOS, p. 32).

Embora o Supremo tenha apoiado o golpe militar, na forma da declaração do seu presidente, desde o início seria incorreto apontá-lo como cúmplice do Regime, já que seus ministros se opuseram às medidas de exceção na forma que puderam. Os presidentes militares mantiveram a Corte aberta durante todo o período da ditadura buscando dar a impressão de normalidade institucional e de que a democracia brasileira havia sido preservada. Todavia, o Regime nunca escondia a insatisfação com as decisões do STF “que contrariassem seus interesses, criando atos institucionais justamente para incapacitá-los [AI-2 e AI-5, em especial]. Os ministros, percebendo isso e tendo consciência do pouco poder que detinham, decidiram ceder em algumas áreas [...], para manter a instituição em pé” (MATOS, p. 41).

Conforme o autor, com o fim da Ditadura e promulgação da Constituição Federal de 1988 o Supremo Tribunal Federal se tornou um ator bem mais importante, influente e independente, com um grande aumento das causas que se tornou competente para julgar. Também expõe o avanço com relação à expansão massiva da competência daqueles que podem entrar com um pedido de Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI). Antes, na Constituição de 1969, privativa do procurador-geral da República (cargo de livre nomeação e exoneração que funciona como uma espécie de secretário do presidente), atualmente, na Carta de 88, podem propor ADI: i) o Presidente da República; ii) a Mesa do Senado Federal; iii) a Mesa da Câmara dos Deputados; iv) a Mesa da Assembleia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal; v) o Procurador-Geral da República; vi) o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; vii) partido político com representação no Congresso Nacional; e viii) Confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional (BRASIL, 1988).

Além disso, consoante o autor, “outra mudança digna de nota foi a possibilidade de o STF emitir súmulas sobre os seus julgados, definindo uma interpretação clara sobre como os demais tribunais nacionais devem decidir os seus casos nas instâncias inferiores” (MATOS, p. 44). O texto constitucional prevê, em seu artigo 103-A, que a Corte elaborará as chamadas “Súmulas Vinculantes”, de ofício ou por provocação, após decisão de dois terços dos seus membros, tendo estas efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nos âmbitos federal, estadual e municipal (BRASIL, 1988). Tais Súmulas funcionam como resumo de decisões anteriores e devem influenciar decisões futuras sobre os temas por elas pacificados, “evitando ações em desacordo com o entendimento da corte por parte destes [órgãos] e abrindo a capacidade de serem utilizados inclusive como argumentação para decisões jurídicas e políticas” (MATOS, p. 45).

Em seguida, no capítulo dois, intitulado “Direito Internacional e a Ditadura Militar”, buscando apresentar os motivos que levaram à ruptura democrática pelos militares em 1º de abril de 1964, o autor expõe que, além de fatores internos (influenciados pelas tradicionais elites nacionais) houve também influência de fatores externos (Guerra Fria, com EUA e URSS nos polos ideológicos). Buscando evitar que mais eventos como a Revolução Cubana (1959) ocorressem na América Latina, o governo norte-americano resolveu intervir nos países da América do Sul e Central utilizando os militares desses países, onde estes tomariam o poder por si mesmos, mesmo que às custas de governos constitucionais.

O fato de João Goulart posicionar-se contrário à intervenção militar em países da América Latina que se posicionavam de modo diverso ideologicamente aos Estados Unidos e no contexto do bloqueio de Cuba, pois entendia ser grave violação ao princípio da autodeterminação dos povos, para o autor, “embora juridicamente correta, revelou-se catastrófica em termos políticos” (MATOS, p. 52). Pois, tanto os EUA quanto os militares do Brasil chegaram à conclusão de que o presidente brasileiro possuía simpatias com o socialismo castro-soviético, e deveriam agir.

Uma das teses levantadas no livro é o entendimento de “fronteiras ideológicas”, defendido por Castelo Branco. Para o primeiro presidente do Regime “os Estados americanos [poderiam] intervir coletivamente em qualquer outro Estado Branco, quando algum governo, considerado democrático, estivesse em risco de sucumbir para um movimento comunista ou semelhante” (MATOS, p. 52). Em consonância com o defendido por Castelo, em 1965 os EUA aprovaram uma resolução segundo a qual os norte-americanos e os presidentes dos países da América Latina “teria[m] o direito de invadir qualquer país que apresentasse tendências de se tornar socialista, o que apresentaria um risco para o hemisfério ocidental, em sua visão, consolidando, dessa forma, o sistema que o presidente Castelo Branco viera a defender em relação às fronteiras ideológicas” (MATOS, p. 52). Porém viera a fracassar em 1967, na III Conferência Interamericana Extraordinária da Organização dos Estados Americanos e com o advento do governo Costa e Silva, feroz opositor a Castelo Branco e integrante da chamada “Linha Dura do Regime”.

Sobre a Operação Condor, aduz o autor que após a queda do então presidente do Chile, Salvador Allende, e a ascensão de Augusto Pinochet, os serviços secretos da Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai passaram a cooperarem-se mutuamente na repressão e eliminação de adversários políticos das então ditaduras militares presentes no chamado Cone Sul. “Essa operação foi intitulada Operação Condor, em 1975, nomenclatura utilizada para designar o acordo/cooperação feito entre as ditaduras militares sul-americanas” (MATOS, p. 58). Consoante o autor, tal operação teve base nas doutrinas de contra insurreição e combate ao inimigo interno e foi responsável pelo desaparecimento e/ou assassinato de diversos civis e militantes durante o período ditatorial na América Latina, onde não somente a América Latina foi alvo da referida Operação, visto que seu raio de atuação alcançou até mesmo os EUA e a Europa. Nos anos de 2017 e 2019 o Tribunal de Apelação de Roma condenou militares e civis integrantes da Operação Condor que assassinaram ao menos 23 pessoas na Itália.

No capítulo final, intitulado “julgamento da ADPF 153: impunidade para os agentes que cometeram crimes hediondos?”, é apresentado um breve histórico do surgimento do instituto da Anistia em Roma, quando do assassinato do Imperador César, em 44 a.C., o qual finaliza-se afirmando que “embora o transcurso temporal desse fato da história para a nossa atualidade contemporânea possa ser medido em milênios, foi em um contexto parecido que se deu a criação da Lei 6.683, no Brasil, conhecida popularmente como Lei de Anistia” (MATOS, p. 71). Tal Lei, instituída em 1979, após o apelo de movimentos sociais e de órgãos internacionais, inclusive a Alemanha, a qual condicionou o financiamento de energia nuclear no Brasil à redemocratização do país. Aduz o autor que esta lei foi feita para implantar um amplo e irrestrito perdão mútuo “de modo que ambos os lados beligerantes, durante o período correspondente entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, não fossem responsabilizados por eventuais ações que poderiam ser catalogadas como crimes, possibilitando, assim, uma reconciliação nacional” (MATOS, p. 72).

A Lei foi recepcionada pela Constituição de 1988, mas em 21 de outubro 2008, o Conselho Federal da OAB ajuizou uma ADPF contra o seu § 1º do artigo 1º, argumentando existência de controvérsia constitucional relevante acerca de tal parágrafo, tendo em vista ele possibilitar que crimes como homicídio, desaparecimento forçado e torturas fossem igualmente anistiados, “visto que foram cometidos com base em motivação política, tal como mencionado no próprio parágrafo, uma vez que tais ações eram institucionalizadas pela ditadura contra seus opositores” (MATOS, p. 74). Assim sendo, a referida violação de preceito fundamental seria referente à anistia concedida aos crimes conexos aos políticos ou com motivação política, nos quais se encontram os abusos e violações de direitos humanos tão reconhecidos.

Posteriormente catalogada como ADPF 153, esta foi distribuída na Corte Suprema e teve como relator o Ministro Eros Grau. No julgamento da referida Ação, por um placar de 4x2, pela sua improcedência, “o relator da respectiva ADPF, Eros Grau, acompanhado pelos ministros, Celso de Mello e Gilmar Mendes e pela ministra, Carmen Lucia, votando pela improcedência da ADPF 153, enquanto os ministros Ayres Britto e Enrique Ricardo Lewandowski votaram pela procedência” (MATOS, p. 83). Para o autor, o parecer do relator foi eivado de equívocos, tendo em vista existirem margens para a compreensão de que tal ADPF poderia retirar a anistia concedida às pessoas que se opuseram à ditadura militar, o que nunca foi o objetivo da OAB ao propor a Ação, já que se pedia então um esclarecimento do §1º, do artigo 1º da Lei, afastando a anistia dos crimes comuns praticados por agentes públicos.

Na convicção do autor, a decisão de improcedência da ADPF pode ser vista como possuidora de motivação alheia a critérios jurídico-normativos que regem o direito brasileiro, levando em consideração que alguns dos ministros que votaram contrário ao texto (em especial Eros Grau, Celso de Mello e Gilmar Mendes) deixaram uma percepção bastante nítida de que a Lei de Anistia tratar-se-ia menos de uma lei e mais de um acordo político feito à época, de modo a criar espaço e perspectiva para a eventual abertura democrática do Estado brasileiro.

O autor compreende que o STF teve razão quando do não provimento da ADPF 153, pois a Lei de Anistia encontra-se válida, seja nos moldes da Constituição passada ou nos da atual, pois seguiu todo o procedimento para a concessão de anistia, razão pela qual foi recepcionada pela Constituição de 1988. Ainda que tal lei deixasse de vigorar, ainda assim os fatos delituosos, cometidos pelos agentes da ditadura, já estariam prescritos desde os anos 90, tendo em consideração a figura da prescrição do Código Penal, pois mesmo que a Lei deixasse de existir, ainda assim os crimes praticados por tais pessoas não poderiam ser julgados no Brasil, pois já se encontram prescritos pelo decurso temporal de vinte anos desde o seu conhecimento.

Em suma, esta obra é o resultado de uma revisão bibliográfica que merece ser lida a título introdutório sobre o tema, carecendo de aprofundamentos futuros por parte do autor. O que não descredibiliza o trabalho, pelo contrário, dá azo para que este possa aprofundar mais o tema, principalmente no que se refere à figura do Supremo Tribunal Federal no período entre 1964 e 1985. Trabalho que merece crédito e apreço, pois se mostra necessário para compreendermos o funcionamento das instituições em nosso país no período anterior e posterior ao Golpe Civil-Militar de 1964, principalmente do Supremo Tribunal Federal e como este esteve vinculado, ao menos parcialmente, ao Regime Civil-Militar.


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Referências


BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado, 1988.

MATOS, Demetrius Silva. Direito na ditadura: o uso das leis e do direito durante a ditadura militar. 1. ed. Jundiaí: Paco, 2021.

MEDEIROS, Daniel. O presidente e o STF. Plural Curitiba, Curitiba, 06 maio 2022. Disponível em: https://www.plural.jor.br/podcast/sine-ira/o-presidente-e-o-stf/. Acesso em: 17 dez. 2022.

SENADO NOTÍCIAS. Senado já rejeitou médico e general para o Supremo Tribunal Federal. 2015. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2015/06/01/senado-ja-rejeitou-medico-e-general-para-o-supremo-tribunal-federal. Acesso em: 17 dez. 2022.


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